O crime infame (Por J. A. Azeredo Lopes)
Denunciam-se os crimes cometidos no quadro da agressão russa contra a Ucrânia, mas Gaza e os palestinianos não existem
atualizado
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Nas últimas semanas, muito tem sido glosado sobre as ações do Estado de Israel na Faixa de Gaza (mas, também, na Cisjordânia), assim como sobre a imputação de crimes internacionais, incluindo o de genocídio, aos principais responsáveis políticos israelitas.
Todos o sabemos. Esta guerra teve, na sua origem, os ataques terroristas de 7 de outubro de 2023 cometidos pelo Hamas. Estas ações, crimes miseráveis, desencadearam a resposta militar de Israel e ninguém de boa-fé questionou a sua legitimidade.
Pouco a pouco, no entanto, e agora de forma óbvia, percebeu-se que aquela resposta era muito mais do que defensiva e, sobretudo, que o seu alvo não era só o Hamas. Eram, isso sim, todos os palestinianos. Todos eram alvos legítimos, e alvos desejados, por mais que, com escandalosa desfaçatez, o primeiro-ministro israelita proclamasse que a “sua” guerra era a mais moral de todas.
No imediato pós-7 de outubro, muitas declarações de elementos do Governo israelita e de outros órgãos de soberania se caracterizaram pela forma odiosa como descreviam todos os palestinianos. Yav Gallant, então ministro da Defesa, justificava assim o cerco total de Gaza: “Combatemos bestas humanas e agimos em conformidade.” Já na altura, também, Netanyahu falava de uma guerra que opunha os “filhos da luz” aos “filhos das trevas”, tendo invocado várias vezes Amalec, a tribo inimiga figadal dos israelitas, e por isso merecedora de uma guerra santa, nos seguintes termos: “Matarás homens e mulheres, crianças e recém-nascidos, bois e ovelhas, camelos e jumentos [Samuel, 1, 15].” Que mensagem transmitia Netanyahu?
Eram já declarações especialmente graves, hoje banalizadas e ainda mais violentas, feitas por elementos do Governo de Israel, ou parlamentares, ou nas redes sociais e em canais de televisão, e muitas, muitas, feitas por militares israelitas no topo da hierarquia. Foi, depois, promovida a identificação do 7 de outubro ao Holocausto nazi, por vezes com episódios repelentes, como aquele em que o representante israelita nas Nações Unidas surgiu perante o Conselho de Segurança com a estrela de David amarela no braço. O que diríamos se, porventura, esta verbalização do ódio tivesse sido feita por Bashar-al-Assad, o ditador sírio, entretanto derrubado e escondido em Moscovo? Ou por Omar al-Bashir, o ditador sudanês indiciado pela prática do crime de genocídio? Ou, até, por Vladimir Putin? Sabemos a resposta.
Mas, genocídio? Durante muito tempo, evitou-se o qualificativo. A meu ver, esse cuidado foi, até certa altura, aceitável. O crime de genocídio é o crime dos crimes, para empregar uma fórmula bem conhecida. E, nos termos do Artigo 2.º da Convenção do Genocídio, pressupõe a “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Falar-se de tudo isto em relação a Israel e aos seus responsáveis sempre seria um o difícil de dar. No Holocausto, pereceram seis milhões de judeus e o conceito de genocídio foi “criado” por Lemkin, porque nada do que existia permitia qualificar o que acontecera.
Por isso, de forma oportunista, muitos aproveitaram para dizer que, quase que por definição, um genocídio não “podia” ser cometido por judeus. A posição é absurda, e além de absurda é racista. Um crime, qualquer crime, é cometido por pessoas, quaisquer que sejam a sua raça, credo ou cor. Pode, no ado, o crime de genocídio ter sido cometido por indivíduos alemães (o Holocausto), turcos (genocídio arménio), hutus (no Ruanda), sérvios (na Bósnia) ou sudaneses (no Darfur). Por que razão espúria não “poderia” vir a ser cometido contra os palestinianos em Gaza por indivíduos que calha serem judeus ou israelitas?
Outros foram ainda mais longe. Seria antissemita o facto de se considerar que a Benjamin Netanyahu, entre outros, pode ser imputado o crime de genocídio. Foi essa, aliás, a estratégia gulosamente seguida pelo próprio, quando declarou, e reiterou, que qualquer acusação contra ele dirigida (no caso, pelo TPI) era um ataque ao Estado de Israel e aos judeus – logo, antissemita.
Veja-se, a propósito, um caso recente ocorrido entre nós. Refiro-me à comparação entre Hitler e Netanyahu feita por um cartoon publicado neste jornal. O cartoon seria… antissemita, já se esperava. Quando se diz que a comparação feita no tal cartoon é ilegítima, e se insinua que devia o cartoon ser proibido, promove-se um efeito inaceitável, o de considerar que se Gaza não pode ser comparada ao Holocausto, então não é “nada” – ou, vá lá, nada de grave.
Ainda com banda mais larga, seriam também antissemitas, e pró-Hamas, as críticas feitas por França, Canadá e Reino Unido aos desmandos cruéis cometidos em Gaza. Quem assim fala, é inevitável, “coletiviza” Netanyahu, ou Yav Gallant, ou Smotrich e tantos outros, transformando-os em representações vivas e coletivas dos judeus (como povo). Com que direito, pergunta-se?
E os artifícios de linguagem? A respeito de Gaza, há quem, de forma compungida, mencione uma “tragédia”, como se matar deliberadamente à fome, ou ass mulheres e crianças, ou promover a expulsão “voluntária” de Gaza daqueles que venham a sobreviver, fosse uma desgraça divina, sem autoria humana. E, é claro, não podia faltar a falácia tu quoque. Morrem dezenas, ou centenas, em Gaza, depois milhares, depois muito mais do que cinquenta mil? Sem nunca conceder, responde-se: e no Iémen, em que morreram muitos mais? E na Síria? E na República Democrática do Congo? Desta forma, se os media falarem do genocídio em Gaza, são eles próprios antissemitas, porque, de forma seletiva, destacam o caso de Israel.
Denunciam-se (e muito bem) os crimes cometidos no quadro da agressão russa contra a Ucrânia, mas Gaza e os palestinianos não existem, são os novos invisíveis. Este é um duplo standard tão gritante que nem justifica particulares desenvolvimentos. É como Roosevelt terá afirmado a respeito de Somoza, o então ditador da Nicarágua. Talvez ele seja um “filho da mãe”, disse. Mas é “o nosso filho da mãe”. Para muitos, Netanyahu é “o nosso filho da mãe”.
No início de maio, o Parlamento Europeu adotou uma resolução que condenava a transferência forçada de crianças ucranianas para a Rússia, fazendo referência a uma “estratégia de genocídio para eliminar a identidade ucraniana”. Muito bem. E as crianças de Gaza? Aos costumes, nada?
Não “vermos” o que está a acontecer em Gaza é uma escolha. Ao menos, que a cegueira seja assumida.
(Transcrito do PÚBLICO)